Dizem que o reino anda mal
governado, que nele está de menos a justiça, e não reparam que ele está como
deve estar, com sua venda nos olhos, sua balança e sua espada, que mais
queríamos nós, era o que faltava sermos os tecelões da faixa, os aferidores dos
pesos e os alfagemes do cutelo, constantemente remendando os buracos,
restituindo as quebras, amolando os fios, e enfim perguntando ao justiçado se
vai contente com a justiça que se lhe faz, ganhado ou perdido o pleito. Dos
julgamentos do santo ofício não se fala aqui, que esse tem bem aberto os olhos,
em vez da balança um ramo de oliveira, e uma espada afiada onde a outra é romba
e com bocas. Há quem julgue que o raminho é da paz, quando está muito patente que
se trata do primeiro graveto da futura pilha de lenha, ou te corto, ou te
queimo, por isso é havendo que faltar à lei, mais vale apunhalar a mulher, por
suspeita de infidelidade, que não honrar os fiéis defuntos, a questão é ter
padrinhos que desculpem o homicídio e 1000 cruzados para pôr na balança, nem é
para outra coisa que a justiça a leva na mão. Castiguem-se lá os negros e os
vilões para que não se perca o valor do exemplo, mas honre-se a gente de bem e
de bens, não lhe exigindo que pague as dívidas contraídas, que renuncie à
vingança, que emende o ódio, e, correndo pleitos, por não se poderem evitar
todo, venha a rebulice, a trapaça, a apelação, a praxe, os ambages, para que
vença tarde quem por justiça justa deveria vencer cedo, para tarde perca quem
deveria perder logo. É que, entretanto, vão-se mungindo as tetas do bom leite
que é o dinheiro, requeijão precioso, supremo queijo, manjar de meirinho e
solicitador, de advogado e inquiridor, de testemunha e julgador, se falta algum
é porque o esqueceu o padre Antônio vieira e agora não lembra.
(José Saramago - Memorial do
Convento)