Milhões de brasileiras lidam diariamente com o
assédio e a violência. Não bastasse o trauma pela violação dos corpos, das
identidades e da vida delas, muitas precisam enfrentar o medo de denunciar os
responsáveis pelas agressões. Apenas depois que o cozinheiro Marinésio dos
Santos Olinto, 41 anos, confessou ter matado a advogada Letícia Curado, 26, e a
auxiliar de cozinha Genir Pereira, 47, outras mulheres procuraram as delegacias
ao identificarem-no como suspeito de violentá-las. Coagidas, intimidadas, ameaçadas,
amedrontadas, muitas vítimas se mantêm caladas e preferem não registrar
ocorrência. Isso aconteceu com 52% das 16 milhões de brasileiras com 16 anos ou
mais que sofreram algum tipo de violência entre fevereiro de 2018 e fevereiro
último. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Denunciar o marido exigiu coragem por parte de
Joana (nome fictício). Casada com um aposentado, ela convive com o pânico de
sofrer novas agressões ou de se tornar vítima de feminicídio. “Não quero mais
ficar aqui (na casa do casal). Ele não vai me dar sossego. E eu estou, a cada
dia, pior”, relatou, sem conter as lágrimas. “Quando saio, a minha cabeça fica
a mil. Não demoro na rua. Ele me segue a todo lugar, me liga de minuto em
minuto, me manda tirar foto para mostrar onde estou. Fico doente com tanta
pressão”, desabafa.
Recentemente, Joana descobriu um início de
demência, provocado pelo grau de estresse enfrentado em ambiente familiar. “O
diagnóstico me tirou do chão. A demência, geralmente, aparece a partir dos 60
anos, quando a pessoa enfrenta um grau de estresse muito grande ou se tem
diabetes, pressão alta. De fevereiro para cá, a minha vida tem sido uma
loucura. Não sei como estou aguentando”, relata Joana, que ainda não chegou aos
50 anos.
Em fevereiro, o marido a agrediu, puxando-a pelos
cabelos e arrastando-a para fora do banheiro. Ela registrou a primeira
ocorrência. O agressor ficou afastado por um tempo, mas voltou para casa. A
Justiça concedeu medidas protetivas à vítima, mas Joana não quis ir para a Casa
Abrigo, pois ficaria isolada e não poderia continuar a estudar nem trabalhar.
Ela pediu para que a decisão fosse revogada. O aposentado fez um curso para
agressores, por determinação judicial, mas poucas coisas mudaram. “Agora, a
arma dele fica guardada. Mas, antes, ele dormia ao meu lado, com a pistola embaixo
do travesseiro”, conta.
Desde a criação da qualificadora do crime de
feminicídio — em 9 março de 2015 — até 31 de julho, o Distrito Federal
registrou 76 ocorrências desse tipo. Em 69% dos casos, a vítima havia sofrido
violência antes do assassinato, mas não denunciou o agressor. Os investigadores
obtiveram as informações por meio de testemunhas. A polícia não conseguiu
material suficiente para averiguar os 31% restantes.
Professora dos cursos de direito e psicologia da
Universidade Católica de Brasília (UCB), a psicóloga Heloisa Maria de Vivo
Marques comenta que o fator medo do que o autor pode fazer é um dos principais
motivos para a subnotificação dos casos de violência contra a mulher. “A
vergonha também aparece muito nessa questão. Muitas pensam ‘O que eu vou falar?
Como dizer que eu escolhi um homem para amar que é um agressor?’”, exemplifica.
Heloisa Maria acrescenta que existe a dificuldade
em identificar o crime, especialmente nos casos de violência sexual e
psicológica. Além disso, há recorrência no processo de culpabilização ou
revitimização. A psicóloga cita a questão cultural que envolve o papel de
cuidar, constantemente associado às mulheres, como fator de influência nesse
processo. “Crescemos aprendendo que temos de cuidar dos outros. Colocamo-nos em
segundo plano; não denunciamos pelo bem-estar dos outros; pensamos nos filhos.
Mas não somos nós que estamos mandando prender. Foi o agressor que cometeu uma
atitude que é um crime”, ressalta.
Uma das saídas, segundo ela, envolve não apenas a
punição para o agressor, mas também medidas de investimento em trabalhos
educativos, desde a infância, sobre construções de gênero. “Trabalhar a
prevenção é importante até para os homens, como podemos ver pelos problemas da
masculinidade tóxica. Alguns papéis (estabelecidos socialmente) são
prejudiciais até para eles”, diz a psicóloga.
Fonte: Correio Brasiliense